sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Janus - Parte 1

Salve-me!” – Era o sussurro que ouvia daquele homem, imerso em águas infindas. Não havia saída ou limite para aquela água esverdeada e, no meio de tudo estava aquele homem, vestido com farrapos negros, com tiras enegrecidas boiando em meio à água, olhando para ele como que de dentro de um tanque ou um aquário, pedindo que o salvasse. Mas não havia nada que pudesse fazer.
Mentira...” – sussurrava a voz, com raiva contida. Olhou para ela e viu que o homem não mais se debatia. Ao contrário, olhava para ele intimidadoramente. Já não parecia um homem desesperado, mas sim um predador, um tubarão imóvel, de braços cruzados, flutuando na água, prestes a atacar.
Súbito, o corpo inerte que o encarava, avançou contra ele, agitando as águas, liberando bolhas de seus lábios, enquanto rosnava em sua mente: “Deixe-me sair!” - Acordou suando frio na cama. Não sabia o que mais o assustara, se a fúria do homem ou o fato do homem ser ele mesmo.
***
Purgatório, um lugar não muito bom para se visitar na Cidade Vertical. Construído em um vão entre o sexto e o sétimo distritos, deveria ser um tipo de depósito ou algum projeto esquecido pelos construtores. De algum modo, todavia, o lugar acabou sendo habitado. A princípio, por gangues de desabrigados, depois por um estranho grupo de habitantes, conhecidos como Desmortos, os habitantes e guardiães do Purgatório. Ao menos foi assim que certa vez um grupo de limpeza do Panopticon ouviu os próprios mascarados se denominarem, antes de matarem a maioria do grupo. Depois do incidente, o lugar se tornou um espaço sinistro, sombrio e abandonado. Por determinação do Olho do Povo, toda a energia do lugar foi cortada. Mas dizem que os Desmortos ainda vagam pelo Purgatório, usando bizarras máscaras e uniformes de operário, todos iguais, sem nomes, trazendo sentenças terríveis para os desavisados e azarados que por lá vem passar. Uma verdadeira cidade fantasma oculta entre os andares da Cidade Vertical. Às vezes, percorrendo a pista 13 que interliga o sexto ao sétimo distrito, pode-se observar focos de chamas em um ponto escuro, ouvir estranhos sons vindo do abismo, ou mesmo, dizem alguns mais impressionáveis, ver emergir do escuro algum rosto pavoroso, com máscaras que mais parecem monstruosas extensões de carne. Muitas lendas urbanas têm surgido desde a criação do Purgatório. Uns dizem que os Desmortos estão reunindo pessoas, seqüestrando gente dos outros Setores e montando um exército de loucos homicidas; outros afirmam que os Desmortos não são humanos, mas estranhos seres cibernaturais, místicos que alteraram suas faces usando de circuitos integrados de uma origem pandimensional. A verdade, no entanto, permanece oculta, mas é fato que a pista 13 costuma ser evitada em certos horários, onde coisas estranhas costumam acontecer e veículos a desaparecer sem deixar vestígios.

E era lá que estava, mais uma vez, a terceira em uma semana. Quase como um ritual, quando voltava do trabalho, Harold sentia uma forte atração pelo Purgatório. Andava vagarosamente pela estrada até localizar a pequena e obscura bifurcação que conduzia, por uma pequena vicinal artificial, rumo à escuridão que conduzia ao desconhecido; sentia aquela sensação várias vezes: angústia, ansiedade, sensação de estar sendo observado, e o desejo irrealizável de entrar na estrada oculta. Sentia a garganta seca e os olhos arderem, o coração batia cada vez mais acelerado e sentia uma pressão na nuca. As mãos suavam ao volante, enquanto o braço deslizava até a maçaneta da porta, buscando abri-la. Expor-se àquele perigo, sem a proteção de um vidro, sem poder ser mero espectador, era algo insuportável que o corroia quanto mais a mão trêmula tocava o puxador da porta do carro. A testa brilhava de suor, enquanto a garganta mal conseguia engolir a saliva. Quando a tensão atingiu o limite do intolerável, acelerou o carro, como que fugindo do terror, sentindo novamente aquela sensação de fracasso, fracasso em cometer suicídio. Mas ele voltaria novamente, e na próxima (sempre na próxima), ele entraria no Purgatório.