“Mentira...”
– sussurrava a voz, com raiva contida. Olhou para ela e viu que o
homem não mais se debatia. Ao contrário, olhava para ele
intimidadoramente. Já não parecia um homem desesperado, mas sim um
predador, um tubarão imóvel, de braços cruzados, flutuando na
água, prestes a atacar.
Súbito,
o corpo inerte que o encarava, avançou contra ele, agitando as
águas, liberando bolhas de seus lábios, enquanto rosnava em sua
mente: “Deixe-me sair!” - Acordou suando frio na cama. Não sabia
o que mais o assustara, se a fúria do homem ou o fato do homem ser
ele mesmo.
***
Purgatório,
um lugar não muito bom para se visitar na Cidade Vertical.
Construído em um vão entre o sexto e o sétimo distritos, deveria
ser um tipo de depósito ou algum projeto esquecido pelos
construtores. De algum modo, todavia, o lugar acabou sendo habitado.
A princípio, por gangues de desabrigados, depois por um estranho
grupo de habitantes, conhecidos como Desmortos, os habitantes e
guardiães do Purgatório. Ao menos foi assim que certa vez um grupo
de limpeza do Panopticon ouviu os próprios mascarados se
denominarem, antes de matarem a maioria do grupo. Depois do
incidente, o lugar se tornou um espaço sinistro, sombrio e
abandonado. Por determinação do Olho do Povo, toda a energia do
lugar foi cortada. Mas dizem que os Desmortos ainda vagam pelo
Purgatório, usando bizarras máscaras e uniformes de operário,
todos iguais, sem nomes, trazendo sentenças terríveis para os
desavisados e azarados que por lá vem passar. Uma verdadeira cidade
fantasma oculta entre os andares da Cidade Vertical. Às vezes,
percorrendo a pista 13 que interliga o sexto ao sétimo distrito,
pode-se observar focos de chamas em um ponto escuro, ouvir estranhos
sons vindo do abismo, ou mesmo, dizem alguns mais impressionáveis,
ver emergir do escuro algum rosto pavoroso, com máscaras que mais
parecem monstruosas extensões de carne. Muitas lendas urbanas têm
surgido desde a criação do Purgatório. Uns dizem que os Desmortos
estão reunindo pessoas, seqüestrando gente dos outros Setores e
montando um exército de loucos homicidas; outros afirmam que os
Desmortos não são humanos, mas estranhos seres cibernaturais,
místicos que alteraram suas faces usando de circuitos integrados de
uma origem pandimensional. A verdade, no entanto, permanece oculta,
mas é fato que a pista 13 costuma ser evitada em certos horários,
onde coisas estranhas costumam acontecer e veículos a desaparecer
sem deixar vestígios.
E
era lá que estava, mais uma vez, a terceira em uma semana. Quase
como um ritual, quando voltava do trabalho, Harold sentia uma forte
atração pelo Purgatório. Andava vagarosamente pela estrada até
localizar a pequena e obscura bifurcação que conduzia, por uma
pequena vicinal artificial, rumo à escuridão que conduzia ao
desconhecido; sentia aquela sensação várias vezes: angústia,
ansiedade, sensação de estar sendo observado, e o desejo
irrealizável de entrar na estrada oculta. Sentia a garganta seca e
os olhos arderem, o coração batia cada vez mais acelerado e sentia
uma pressão na nuca. As mãos suavam ao volante, enquanto o braço
deslizava até a maçaneta da porta, buscando abri-la. Expor-se
àquele perigo, sem a proteção de um vidro, sem poder ser mero
espectador, era algo insuportável que o corroia quanto mais a mão
trêmula tocava o puxador da porta do carro. A testa brilhava de
suor, enquanto a garganta mal conseguia engolir a saliva. Quando a
tensão atingiu o limite do intolerável, acelerou o carro, como que
fugindo do terror, sentindo novamente aquela sensação de fracasso,
fracasso em cometer suicídio. Mas ele voltaria novamente, e na
próxima (sempre na próxima), ele entraria no Purgatório.